segunda-feira, 18 de maio de 2015

Através

Ás vezes eu não estou em mim. Eu olho, mas é através. Escuto, mas é um som meu mais que das ruas, pessoas, espaços. Caminho, mas os passos me fogem. Às vezes eu estou no outro. Isso é desde criança. Fico imaginando como um cachorro me vê passando. Se ele sente o cheiro de sabonete ou de mato no meu tornozelo. Me vejo pelos olhos mareados de um senhor de bengala e, através dele, lembro que deve ser bom demais ter seus trinta e poucos anos, vigor, planos e projetos. Olho uma senhora vendendo balas e um menino que passa correndo se tropeçando pelas minhas pernas. De todos eles me vejo passando, ora como um rapaz educado, "playboy", "só mais um", obstáculo. O que sou para os outros faz parte do que sou também. E não é máscara nem produção ou projeção da psique, nem construção social nem substrato cultural, nem entendimento, nem vontade. Eu sou objeto num mundo de sujeitos também. Desses sujeitos que acabo coisificando na minha frágil tentativa de não me afogar na avassaladora riqueza da pluralidade do mundo. Eu generalizo e sou generalizado. Sou só mais um, um passante, um jovem, um adulto, um menino, um obstáculo, um transeunte, um engomado, um quatro-olhos. Às vezes eu gosto, e gosto de verdade, de não estar em mim. De me ver pelos olhos da moça que toma café na livraria do meu lado, de saber que da perspectiva do livreiro é possível ver o meu piercing, que eu mesmo quase nunca vejo, de me ver de perfil, coisa que quando estou em mim só tenho em foto. Sair de mim e voltar, sem entrar, através das córneas alheias é um aninhar-se na desimportância da multidão que passa e, com ela, perder toda gravidade densa, árida e íntima de mim mesmo. É rever-se leve, passante, talvez educado, mas com certeza completamente desimportante, é perceber o peso do olhar e da vida do outro. Tornar a vida leve e respeitar o peso da vida alheia. É muito bom quando, às vezes, sem querer, me percebo sem mim.
Renato Kress

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